domingo, 28 de novembro de 2010

A História do Rio Grande do Sul - Parte II

Primeira ocupação europeia do interior

Entrementes, na parte noroeste do estado, os jesuítas espanhóis, ligados à Província Jesuítica do Paraguai, haviam estabelecido desde 1626 aldeamentos muito organizados reunindo grande população indígena (cerca de 40 mil pessoas), as reduções ou missões, fundadas próximo ao Rio Uruguai. Sete delas, mais recentes, ficariam sendo mais conhecidas como os Sete Povos das Missões, cujo extraordinário florescimento incluía refinadas expressões de arte nos moldes europeus. Os padres construíram uma civilização à parte dos conflitos que agitavam o litoral, e deixaram muitos registros sobre os povos indígenas, sobre a geografia, a fauna e a flora da região, mas sua contribuição mais direta para a história do estado se resumiu à introdução do gado e ao desenvolvimento de técnicas de pastoreio que mais tarde seriam assimiladas pelos portugueses.

No século XVIII um novo acordo entre as coroas ibéricas, o Tratado de Madrid, haveria de mudar mais uma vez as fronteiras. Através deste tratado, firmado em 13 de janeiro de 1750, estabeleceu-se a permuta da Colônia do Sacramento pelos Sete Povos, cujas populações indígenas seriam transferidas para a área espanhola além do rio Uruguai. A demarcação das novas fronteiras e a mudança dos povos aldeados não transcorreram sem dificuldades. Os jesuítas e os índios protestaram, esperava-se confronto, e o Marquês de Pombal ordenou que o legado português, o capitão-general Gomes Freire de Andrade, não entregasse Sacramento sem que antes tivesse recebido os Sete Povos. A situação se agravou e o conflito esperado eclodiu em Rio Pardo, originando a chamada Guerra Guaranítica, que dizimaria grande número de índios e dissolveria as Missões, mas no episódio despontou a figura legendária do líder indígena Sepé Tiaraju, hoje considerado um herói do estado e um mártir da causa dos índios.
Depois da Guerra Guaranítica, Portugal decidiu prestar mais atenção à capitania, que por esta altura contava com pouco mais de sete mil habitantes, distribuídos em cerca de 400 estâncias e poucos povoados e arraiais. Desvinculou-a de Santa Catarina e a ligou diretamente à sede carioca, nomeando um governador civil em vez de um comandante militar. Em 1760 o governador espanhol em Buenos Aires, Don Pedro de Cevallos, começou a intimar os portugueses a abandonarem todas as terras ocupadas ilegalmente. Diante da ausência de resposta, em 1763 atacou e conquistou Rio Grande, causando a fuga em massa dos populares e obrigando a mudança às pressas da capital portuguesa para Viamão. Agora o território português se resumia a uma estreita faixa entre o litoral e o vale do rio Jacuí. Em 1773 a capital foi transferida de Viamão para Porto Alegre, em vista de sua situação geográfica privilegiada. Em 1776 a vila de Rio Grande foi retomada. Um outro tratado, o de Santo Ildefonso, de 1777, mais uma vez retificaria as fronteiras e estabeleceria desta vez como posse espanhola tanto Sacramento como os Sete Povos. No final do século já existiam cerca de 500 estâncias em atividade.

Com a paz de Santo Ildefonso se intensificou a concessão de sesmarias aos que se haviam destacado na guerra, e esta classe de militares, agora donos de terras, foi a origem da aristocracia pastoril gaúcha, consolidando o regime das estâncias como uma das bases econômicas da região, mas dando margem também a uma grande quantidade de abusos de poder, que tinham seu fundamento na realidade de um grupo que se experimentara a ferro e fogo, mas para quem o senso de justiça, lei e humanidade estava morto. Os próprios administradores régios davam péssimo exemplo, enriquecendo à custa da província e acumulando vastas extensões de terras. Cada grande sesmeiro era como um poderoso senhor feudal que só atendia aos seus interesses e os impunha pela força. Repetidas vezes as queixas chegaram à Coroa, mas sempre com pouco resultado. A vida na estância era precária em todos os sentidos. Somente os senhores podiam ter algum luxo numa casa grande, que mais se parecia a uma fortificação, com paredes grossas e grades nas janelas. Em torno dela se agrupavam a senzala e famílias livres, que vinham em busca de proteção e recebiam uma porção de terra em troca de um compromisso de fidelidade servil para com o proprietário, produzindo alimentos e bens manufaturados para seu sustento próprio mas sobretudo para o patrão. A habitação desses agregados era um sumário casebre de barro coberto de palha, despojado de todo confortoUm relato de época, deixado por Felix Azara, descreve o ambiente:
“Possuem um barril para a água, uma guampa para o leite e um espeto para assar a carne. A mobília não vai além de umas três peças. As mulheres andam descalças, sujas e andrajosas. Seus filhos se criam vendo somente rios, desertos, homens vagos correndo atrás das feras e touros, matando-se friamente como se degolassem uma vaca".

Mas esse cenário nem sempre foi assim tão desumano. Muitas estâncias produziam uma variedade considerável de produtos agrícolas e de uma indústria primitiva, tornando a propriedade autossuficiente e as condições gerais um pouco melhores. Havia momentos de entretenimento nos bolichos, pequenas casas de comércio, bebida e encontro social masculino de beira de estrada, e as festas religiosas na capela local congregavam toda a pequena comunidade e atraíam grupos de outras estâncias. Nesses encontros começou a se formar o folclore do Rio Grande do Sul, na contação de causos (relatos de façanhas e fatos extraordinários) em torno do fogo, nas carreiras de cavalos, na troca de experiências sobre a vida campeira, na absorção e transformação dos mitos indígenas locais.
O empregado da estância foi, assim, um dos formadores da figura prototípica do gaúcho, uma figura que na verdade foi "construída" pela intelectualidade local no século XX, mas que hoje é a inspiradora de parte importante da cultura do estado e do seu senso de identidade. Outra parte do caráter total dessa entidade abstrata, uma parte que diz respeito à insubmissão e liberdade, foi emprestada do povo errante de homens sem lei, formado por índios evadidos das missões, contrabandistas, caçadores de couros, aventureiros, escravos e bandidos foragidos, que percorriam em predação os campos de gado livre. Diversos nomes se deram a essa população, entre eles faeneros, corambreros, índios vagos, gaudérios, guascas e gaúchos. Viviam em bandos por conta própria, comendo carne e bebendo mate e aguardente, vestidos de uma indumentária simples e adaptada à vida constante sobre um cavalo, enfrentando dias de intenso frio nos invernos, tendo de dormir via de regra a céu aberto. Eram sempre um perigo para os estancieiros, especialmente os mais pobres, e constantemente se envolviam em rusgas com os espanhóis na fronteira. Suas relações com os oficiais do reino eram ambíguas. Por um lado competiam na presa do gado solto, mas também podiam ser contratados para fazerem o mesmo serviço para um senhor ou prestar tarefas militares junto a um destacamento oficial. Em 1803 seu número chegava a quatro mil, numa população total de 30 mil habitantes.
Até então o interesse dos colonizadores pelo gado se resumia ao couro, que era de grande importância na vida cotidiana da colônia. A carne era apenas para uso familiar, e todo o excedente era desprezado. Calcula-se que o rebanho livre tenha chegado a cerca de 48 milhões de reses e um milhão de cavalos. Depois de 1780 o gado livre começou a rarear, mas então se abriu um novo e amplo mercado para a carne que era descartada, iniciando a cultura das charqueadas, cujo produto seguia para o Nordeste a fim de alimentar os escravos dos engenhos de açúcar.

Século XIX

Após a Guerra de 1801, um novo acordo, o Tratado de Badajoz, redefiniria o traçado das fronteiras do estado entregando as Missões para Portugal, permanecendo Sacramento com a Espanha. Assim se iniciava um período de organização administrativa, social e econômica. Nos poucos centros urbanos, como Porto Alegre, Rio Grande, Viamão, Pelotas e Rio Pardo, a sociedade começava a se estruturar. Um inglês, J. G. Semple Lisle, visitando Rio Grande nessa época, deixou um testemunho muito favorável sobre o bom acolhimento que teve e as maneiras prestativas do povo, cuja hospitalidade "excede tudo o que vi em outras partes do mundo. (…) Poderia encher um volume com a narração dos atos de bondade com que fomos cumulados".
Porto Alegre tinha cerca de quatro mil habitantes e sua vida como capital começava a se definir claramente, além de crescer como força econômica, assumindo a posição de maior mercado do sul. Seu comércio se fortalecia com a atividade crescente do porto, localizado na confluência das duas principais rotas de navegação interna, e já havia espaço para a abertura da sua primeira Casa de Ópera, na verdade um barracão de pau-a-pique, mas que indicava o esboço de um interesse cultural mais sofisticado. Enquanto isso, Pelotas se firmava como maior centro da produção de charque e através dele nascia uma aristocracia urbana, embora fosse se individualizar de Rio Grande apenas em 1812, tornando-se Freguesia de São Francisco de Paula (recebendo o nome Pelotas algumas décadas depois). Em 19 de setembro de 1807 a Capitania ganhou sua autonomia e em 1809 foi elevada a Capitania Geral, composta por apenas quatro municípios: Porto Alegre, Santo Antônio da Patrulha, Rio Grande e Rio Pardo, que dividiam entre si toda a extensão do estado.
A paz durou pouco. Em 1811 o estado já se via envolvido em nova disputa internacional, agora despertada pela revolução iniciada por Artigas em Buenos Aires e que pretendia unificar todos os estados do Prata. Montevidéu resistiu e pediu ajuda ao príncipe regente Dom João, e este enviou tropas gaúchas para combater, sob o comando de Dom Diogo de Souza, o chamado Exército Pacificador. Na esteira do avanço militar pelo pampa, fundaram-se cidades como Bagé e Alegrete. Retirou-se o exército pouco depois, em função da assinatura de um armistício, apenas para ser substituído em 1816 por um batalhão ainda maior vindo de Portugal, composto por veteranos das guerras européias, a fim de rechaçar a invasão das Missões por Artigas. As lutas terminaram com a anexação da Banda Oriental, o atual Uruguai, ao Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves sob o nome de Província Cisplatina, que na prática se tornou uma extensão do Rio Grande.
Em 1822, com a Independência do Brasil, a Capitania se tornou uma Província, foi constituída a primeira Assembléia eleita, e recebeu seu primeiro governante civil, José Feliciano Fernandes Pinheiro, autor também da primeira história geral do estado, os Anais da Província de São Pedro. Nesta altura a população total chegava a cerca de 90 mil almas. Pelo interior os povoados se multiplicavam, aparecendo Jaguarão, Passo Fundo, Cruz Alta, Triunfo, Taquari, Santa Maria. As Missões, porém, já caíam em ruínas e apenas os velhos índios se lembravam delas, muitas vezes com saudade. Na capital viviam cerca de 12 mil pessoas. Auguste de Saint-Hilaire, visitando então, considerou-a bela, com um comércio variado, muitas oficinas e casas de dois andares, com um povo formoso e vigoroso, mas deplorou a sujeira das ruas. Sobre a administração da Província sua opinião foi claramente condenatória:
"Os abusos atingiram o cúmulo, ou melhor, tudo era abuso. Os diversos poderes confundiam-se e tudo era decidido pelo dinheiro e pelos favores. O clero era a vergonha para a Igreja Católica. A magistratura, sem probidade e sem honra (…) Os empregos multiplicavam-se ao infinito, as rendas do Estado eram dissipadas pelos empregados e pelos afilhados, as tropas não recebiam seus soldos; os impostos eram ridiculamente repartidos; todos os empregados desperdiçavam os bens públicos, o despotismo dos subalternos chegou ao cúmulo, em tudo o arbítrio e a fraqueza andam a par da violência".
O ano de 1824 foi marcado pelo início da colonização alemã no estado, uma iniciativa do governo imperial para povoamento do sul, que visava também a dignificar o trabalho manual, formar uma classe média independente dos latifundiários, engrossar as forças de defesa do território e dinamizar o abastecimento das cidades. Chegando em Porto Alegre, os imigrantes aguardavam até a definição de suas terras e a concessão de provisões iniciais. Nesta cidade grupos remanescentes deram origem ao bairro Navegantes. O grosso do contingente, porém, seguiu para a região ao norte da capital, concentrando-se em torno do rio dos Sinos, formando os núcleos iniciais de cidades como Novo Hamburgo e São Leopoldo e desbravando as matas em torno para instalação de propriedades rurais. As levas de imigrantes germânicos continuariam a chegar ao longo de todo o século XIX, totalizando mais de 40 mil indivíduos, e os centros de povoamento que eles fundaram desenvolveram economias prósperas e culturas regionais características.
As guerras, porém, continuavam. O estado foi a base de operações durante a Guerra Cisplatina, que eclodiu em 1825 pretendendo recuperar o território da Província Cisplatina para as Províncias Unidas do Rio da Prata, havendo escaramuças em território gaúcho e um grande confronto, a Batalha do Passo do Rosário, tida como a maior batalha campal já ocorrida no Brasil. Fructuoso Rivera chegou a reconquistar para as Províncias Unidas os Sete Povos das Missões, mas com a assinatura da Convenção Preliminar de Paz, em 1828, as Missões foram devolvidas - mas não sem antes serem pilhadas pelo exército em retirada - e o Brasil acabou por ter de entregar a Cisplatina por força do Tratado do Rio de Janeiro, que criou a República Oriental do Uruguai.

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