terça-feira, 12 de abril de 2011

Porto + ou - Alegre


Uns chegam, outros partem, mas para todos os navegantes os portos são lugares de passagem, simplesmente. Rasos ou fundos, grandes ou pequenos, vazios ou movimentados, todos os portos se parecem no espelho das águas, no fetiche dos cais, na cor desbotada dos cascos mais ou menos viajados. Nenhum destino pessoal, nenhuma história humana, nenhum roteiro de viagem supera a magia de uma atracagem ou a poesia de um barco deixando o cais, âncoras recém-levantadas.
Tudo isso me ocorre no momento em que finalmente ancoro em Porto Alegre, após décadas rodando por outras cidades, incluindo alguns grandes portos como Rio de Janeiro, Santos e Vitória e pequenos ancoradouros como Curitiba, São Paulo, Ribeirão Preto, Rio Preto e Manguinhos. Em alguns morei semanas, em outros anos. Em cada porto, por pobre que seja, se pode ver a alma de uma cidade. É na água oleosa dos cais que bóiam as melhores histórias salvas dos incêndios econômicos ou das batalhas da vida cotidiana.

Semicercada por um delta fluvial, a capital oficial dos gaúchos já não é o porto movimentado de outrora, mas ainda encontra nas águas do lago Guaíba (antes visto como rio) o reflexo de um presente que migrou para outras cidades transformadas em capitais afetivas: Rio de Janeiro (festa), Florianópolis (lazer), Brasília (o poder), Punta Del Este (o verão), Buenos Aires (compras) e Bariloche (inverno). Isso sem falar de Gramado e Torres, refinados refúgios de todos os momentos.
Em meio a tantas miragens, esse alegre porto de baixo calado (5,50 m) ainda recebe navios de pequeno porte. Eles chegam e saem com meia carga, transportam ferrugens, dívidas e cracas; e alguns se desconjuntam nos cais, sem dinheiro para pagar as taxas portuárias e sem licença para partir.
A sucata mais antiga no cais gaúcho é um navio de bandeira paraguaia chamado Mariscal Estigarribia. Está ali há 14 anos. Deve mais de R$ 2 milhões. Ninguém o quer, só os pombos, os biguás e o fantasma que há dois anos soltou suas amarras e por horas o manteve à deriva nas águas do Guaíba. Águas turvas onde ainda se podem pescar lambaris, jundiás e pintados.
Sim, aqui ainda há quem pesque, mas o que mais se faz é navegar sobre canoas humildes, pesqueiros vagabundos e iates concebidos para ostentar a desigualdade que divide a sociedade humana nesse mundo cruel.
Apesar de tudo, não há como negar a beleza do panorama visto do centenário Cais Mauá, há anos objeto de um projeto de revitalização que propõe o mesmo que os bascos fizeram em Barcelona e os portenhos argentinos no rio da Prata. Aqui autoridades e empresários prometem aplicar R$ 500 milhões antes da Copa de 2014. Prometem mas não sabem exatamente o que fazer com tantos armazéns vazios, tantos pátios de manobras e tanta água ao derredor. Ao desprezar o porto em favor do rodoviarismo, a cidade passou a negar suas origens. Faz 50 anos que Porto Alegre briga com sua geografia, dominada por um aguaceiro sem fim – nada de novo nos frontes portuários: outras cidades beneficiadas por maior beleza geográfica também negam seu nome, trilhando inconscientemente o caminho da Derrota.
Enquanto não se chega a um denominador comum sobre como usar tanta água, o quilômetro de cais desativado serve para turistas embarcarem no Cisne Branco, o barco que navega pelas ilhas do Guaíba em viagens ecológicas ou românticas. Dependendo do ponto de vista, o cenário pode lembrar Amsterdam, Nova York ou Londres, mas de volta à terra o sotaque dominante será inequivocamente gaúcho.
Sim, não há povo mais bairrista do que o porto alegrense. Foi em Porto Alegre que por saudosismo de estudantes do interior começou o movimento tradicionalista. Em pouco mais de 50 anos foram fundados ao redor do mundo mais de mil centros de tradições gaúchas, clubes que cultivam primitivos costumes rurais vinculados à criação de gado. Barbaridade!
Nesta cidade que acabou de enterrar o escritor Moacir Scliar posso por um couvert modesto ver-e-ouvir o escritor Luiz Fernando Verissimo tocando sax de madrugada num botequim da Cidade Baixa. Dizem que o pessoal vai mais pelo folclore do que pela qualidade do show. O jazz que ele toca, herança da adolescência passada em Washington, nada tem a ver com a obra do pai dele, Erico Verissimo, que escreveu O Tempo e o Vento, um romance de 2 mil páginas sobre os 200 anos de história da província gaúcha. De uma forma ou de outra, os dois verissimos fazem parte do stablishment cultural portoalegrete.
Sem dúvida, aqui as noites são melhores do que os dias. Numa noite fresca quem sabe irei ao Hipódromo do Cristal e não negarei apoio ao cavalo puro-sangue-inglês, cujas corridas são um dos maiores espetáculos da Terra. Posso também ir ao Beira-Rio e ver o Inter jogando pela Libertadores. Melhor, posso caminhar até a Avenida Goethe e estacionar na frente de um bar onde uma multidão segue pelo telão os jogos da dupla Grenal.
Eventualmente irei ao Mercado Público para comprar uma erva para o chá, uma fruta da estação, um peixe fresco ou um produto orgânico da lojinha da Reforma Agrária. E em qualquer esquina posso pedir uma salada de frutas que virá gelada num copo generoso.
Não, não vou tremer ao entrar no elevador-gaiola do Correio do Povo, o jornal de 1895 que me serviu como veículo nas primeiras leituras e como bucha de papel no preparo de cartuchos de espingarda, quando eu era caçador, na adolescência. E não, não vou perder a voz ao subir as escadarias da Rádio Guaíba, uma escola de rádio que ameaça perder-se na voragem da globalização evangélica.
Nesta alegre cidade de passagem, se levantar bem cedo e sair pelo bairro Moinhos de Vento, posso cruzar com o governador e seu cão labrador na caminhada matinal. Trocaremos um bom-dia sonoro e ele jamais saberá que perdi a confiança (mas não a esperança) no partido que ajudamos a fundar, nós que somos da geração 47 e, ha-ha-ha, acreditamos que estamos no poder com Dilma lá. - Geraldo Hasse

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