No Sul não existem somente praias, cidades serranas e belezas naturais únicas em todo o Brasil. No inverno ou no verão, pode ser visitado um "país" diferente, esquecido pelos livros de história, marginalizado pelos roteiros turísticos tradicionais e muito pouco conhecido em quase todo o Brasil. Os seus contornos nunca foram muito bem definidos, embora bastante amplos. Antigamente entrava-se nele a partir do rio Paranapanema, na divisa com o Paraná, percorrendo-se suas fronteiras até o extremo meridional do continente, nas costas do atual Uruguai.
Com o tempo, porém, suas fronteiras foram sendo reduzidas e o acesso passou a se dar pelo médio rio Paraná e rio Uruguai até que, simplesmente, desapareceu dos mapas e entrou na história, como uma prematura experiência comunista, muito antes da revolução russa e do próprio Marx. Nos tempos modernos, foi também o mais revolucionário estado teocrático, que deu início à industrialização da América Latina, reunindo, ao mesmo tempo, uma extraordinária arte musical e plástica, com uma vigorosa disposição para a luta, uma hora em defesa do Evangelho e outra ao lado das armas da Coroa espanhola.
Trata-se da República Guarani, que, por cerca de 200 anos, ocupou áreas dos atuais Estados do Paraná e Rio Grande do Sul, e ainda do Paraguai, Argentina e Uruguai, onde foram edificadas dezenas de reduções - as missões -, que levaram, para as selvas do Cone-Sul, sob um duro comando dos padres jesuítas, o esplendor da arte européia e um desenvolvimento urbano que muitas cidades ainda não conhecem, já passado tanto tempo.
As reduções não eram aldeias, mas verdadeiras cidades que se instalavam nas selvas, com toda a infra-estrutura; além da igreja, que era o centro de tudo, havia hospital, asilo, escolas, casa e comida para todos e em abundância, oficinas e até pequenas indústrias. Fabricavam-se todos os instrumentos musicais, tão bem quanto na Europa, por exemplo. Imprimiam-se livros em plena selva, alguns até em alemão.
Possuíam observatório astronômico e até editavam uma carta astronômica e um boletim meteorológico. Foi nessas reduções que se começou a industrializar o ferro, a produzir os primeiros tecidos, e a se criar gado no continente. Foi esse gado, espalhado pelos pampas de todo o Sul, que acabou definindo a vocação econômica do Rio Grande do Sul: a pecuária, de alguma forma ligada a todos os seus acontecimentos históricos.
Ocupavam essas reduções os índios guaranis e tapes - do mesmo grupo -, atraídos pela pregação do Evangelho feita pelos padres jesuítas, decididos a criar uma série de repúblicas teocráticas no continente, baseados na experiência socialista dos incas, no Peru, onde, aliás, haviam iniciado outro agrupamento semelhante, reunindo os índios chiquitos.
Depois de grande conflito, com milhares de mortos, especialmente de índios, Portugal e Espanha voltaram atrás, mas logo dariam o golpe definitivo contra as reduções, expulsando os jesuítas e deixando os guaranis sem qualquer coordenação. Seguiram-se administradores militares e os índios acabaram sendo transformados em guerreiros, nos diversos episódios militares ocorridos no Prata, sendo exterminados completamente nos 60 a 70 anos que se seguiram à expulsão dos jesuítas.
Destruídas primeiro pelos bandeirantes, depois pelas tropas de Portugal e Espanha e, no lado paraguaio, pelo próprio
ditador do novo país, após sua independência, restou pouco das reduções para ser visto nos dias atuais, mas, nas ruínas que ainda são mantidas, há alguma coisa da velha república para apreciar, entrando-se num importante capítulo da história do Sul, muito mal contado em nossos livros.
Os jesuítas cerceavam completamente a liberdade dos índios, mas, à luz da pregação do Evangelho, indiretamente intimidando-os com os conceitos sobre céu e inferno e salvação da alma, conseguiram transplantar da Europa para o interior de nosso continente, há mais de 350 anos, costumes avançadíssimos, uma arte refinada e um modelo utópico de administração - com propriedade coletiva, sem classes e sem governo, e sem oposição entre cidade e campo -, que Clóvis Lugon, em seu livro "A República Comunista Cristã dos Guaranis", chegou a definir como "a mais fervorosa das sociedades cristãs e a mais original das sociedades comunistas". E que foi, como assinalou, "comunista demais para os cristãos burgueses e cristã demais para os comunistas da época burguesa".
A República Guarani pode ser visitada com facilidade, por estradas de asfalto. Três ou quatro dias é o suficiente para admirar o que restou. Igrejas e casas de pedra semidestruídas por incêndios, abandono e a depredação dos moradores das vizinhanças que ocorria até recentemente; algumas dezenas de imagens e de trabalhos nas pedras das construções, são as últimas evidências dessa experiência teocrática.
Passadas tantas batalhas - no sentido literal da palavra -, essas igrejas e obras de arte não têm mais a riqueza de antigamente, com trabalhos em ouro e prata, que os índios importavam do Peru, mas, com o que resta, pode se ter a certeza de encontrar na região lembranças inesquecíveis.
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