quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Valorizando o vinho

Em 2002, o Vale dos Vinhedos na Serra Gaúcha recebeu do Instituto Nacional de Propriedade Industrial o primeiro selo brasileiro de Indicação de Procedência. O fato marca o inicio de uma nova fase na produção nacional de vinhos com a entrada do Brasil no grupo de países com indicações geográficas onde estão, entre outros, França, Chile, Austrália e África do Sul. Atualmente, enquanto o Vale dos Vinhedos caminha para a construção de uma Denominação de Origem (um tipo de indicação geográfica com normas de qualidade mais restritivas), outras regiões vitícolas estão em estágio avançado na obtenção da Indicação de Procedência, como são os casos dos municípios de Monte Belo do Sul e Pinto Bandeira. De fato, nos próximos anos esta deve ser a tônica do processo de qualificação dos vinhos brasileiros.

Além de um conjunto de inovações técnicas que envolvem a delimitação da área geográfica, cultivares e produtos vitivinícolas autorizados, limites de produtividade etc., a Indicação Geográfica (IG) representa um mecanismo de valoração dos bens imateriais associados a uma identidade territorial. Trata-se de uma estratégia de qualificação que enfatiza o enraizamento sociocultural dos vinhos ao território onde é produzido, explorando ativos intangíveis que são intransponíveis para outros territórios. As IG’s carregam consigo a identidade cultural do território, expressando nos produtos os valores, tradições, costumes e o saber-fazer dos vinicultores.
Mas, quais são os benefícios da constituição de uma IG para produtores e consumidores? As transformações recentes no sistema alimentar são marcadas por uma crescente integração dos consumidores na dinâmica dos mercados, os quais passaram a exigir produtos diferenciados e de maior qualidade. Com efeito, o preço perdeu sua primazia enquanto mecanismo de coordenação e a qualidade se tornou um elemento central da dinâmica de todos os mercados alimentares, em especial no segmento vinícola.

No entanto, a qualidade constitui uma informação de mais difícil apreensão do que o preço. Avaliar e diferenciar um produto de acordo com seus atributos de qualidade é um processo complexo que envolve valores e representações sociais conflitantes. Os critérios de qualificação dependem de convenções sociais. A multiplicidade de contextos em que produtores, consumidores, comerciantes e enólogos estão envolvidos torna remota a possibilidade de constituição de parâmetros objetivos que estabeleçam uma equivalência perfeita de valores e, por conseguinte, uma escala única de qualidade. Na valoração de um vinho não estão presentes somente suas qualidades organolépticas, mas sua origem, a memória de ocasiões especiais, distinção social, representações culturais e simbólicas etc. Todos estes valores miscigenados na figura de um consumidor com preferências dinâmicas.
Mas a diferenciação dos produtos também traz consigo incertezas quanto aos atributos de qualidade. No caso dos vinhos, as incertezas são particularmente presentes porque estes apresentam predicados difíceis de serem observados pelos compradores. Daí a importância de profissionais como os enólogos e sommeliers que estabelecem uma espécie de “seguro qualidade” para o consumidor.
As IG’s podem atuar como um mecanismo de redução dessas incertezas qualitativas associadas à dificuldade dos participantes do mercado estabelecerem valores subjetivos claros para os bens. Elas fixam atributos e estabelecem referencias para coordenar as ações de produtores e consumidores. Desta maneira, as IG’s tornam-se fundamentais à ampliação dos mercados. Enquanto nos mercados locais a identidade do produto é assegurada pelos vínculos de confiança, reputação e lealdade construídos pela constância das interações entre consumidores e produtores, nos mercados mais extensos esta identificação depende da criação de mecanismos que possibilitem o reconhecimento dos atributos de qualidade fora do universo das relações interpessoais diretas.

No contexto de crescente mundialização do mercado de vinhos, as IG’s são responsáveis por traduzir os valores locais para um certificado que desobriga as interações diretas entre produtores e consumidores. Em outras palavras, a confiança necessária às interações entre os participantes do mercado materializa-se em um selo que atesta ao consumidor as qualidades do produto. Em troca, tem-se a fidelidade do consumidor que se dispõe a pagar um preço “prêmio” pelo produto. O resultado é a agregação de “valor econômico” para os produtores e para a região como um todo, sem falar nos efeitos positivos ao desenvolvimento do turismo e à valorização da paisagem, gastronomia e cultura locais.



Nenhum comentário: